domingo, 20 de maio de 2018

Viagem a Portugal, de José Saramago

Terminei mais um livro do José Saramago para o meu projeto de ler Saramago e mais uma vez nao me decepcionei, pelo contrario, foi uma excelente experiência. Posso dizer que este é o melhor guia de viagem para Portugal.
Ninguém é viajante se não for curioso.
O personagem, identificado apenas como "viajante", atravessa Portugal de norte a sul sozinho com seus pensamentos irônicos, visitando museus, igrejas, patrimônios historicos, casas de poetas ja mortos, tumulos, parques e praias. Também escuta "causos" e lendas urbanas contadas pelos moradores de vilarejos.

Ele deixou bem claro a diferença entre viajante e turista (viajantes alfacinhas):
O viajante não é turista, é viajante. Há grande diferença. Viajar é descobrir, o resto é simples encontrar.
Aos apressados viajantes alfacinhas que em torrente se despejam por estradas marginais, vias rápidas e auto-estradas à procura da felicidade, pergunta este de pouca pressa por que a não vêm buscar aqui (fala das felicidades que as viagens dão, não doutras). 
Viajante competente é aquele que só vai por maus caminhos quando não tem outros, ou razão superior lhe manda que abandone os bons. Não é enfiar pelo primeiro carreiro que lhe apareça, sem verificação nem cautela.
Todo o viajante tem o direito de inventar as suas próprias geografias. Se o não fizer, considere-se mero aprendiz de viagens, ainda muito preso à letra da lição e ao ponteiro do professor.


 Viajar é querer ficar e querer partir ao mesmo tempo:
O viajante não vai de bom humor. Sabe porém o bastante de si próprio para suspeitar que o seu mal nasce de não poder conciliar duas opostas vontades: a de ficar em todos os lugares, a de chegar a todos os lugares.

Nao esqueça de registrar o que vê e ouve
Viaje segundo um seu projecto próprio, dê mínimos ouvidos à facilidade dos itinerários cómodos e de rasto pisado, aceite enganar-se na estrada e voltar atrás, ou, pelo contrário, persevere até inventar saídas desacostumadas para o mundo. Não terá melhor viagem. E, se lho pedir a sensibilidade, registe por sua vez o que viu e sentiu, o que disse e ouviu dizer. Enfim, tome este livro como exemplo, nunca como modelo.

A felicidade, fique o leitor sabendo, tem muitos rostos. Viajar é, provavelmente, um deles. Entregue as suas flores a quem saiba cuidar delas, e comece. Ou recomece. Nenhuma viagem é definitiva.
(...) talvez até se devesse instituir a profissão de viajante, só para gente de muita vocação, muito se engana quem julgar que seria trabalho de pequena responsabilidade, cada quilómetro não vale menos que um ano de vida.  
 Totalmente de acordo com viajante, se nao for pra ter gostos morbidos eu nem vou. Dizer que foi à Paris e nao foi no Père-Lachaise ou foi na Argentina e nao foi no cemitério da Ricoleta, para mim nem viajou rsrs:
O viajante tem um gosto, provavelmente considerado mórbido por gente que se gabe de normal e habitual, e que é, dando-lhe a gana ou a disposição de espírito, ir visitar os cemitérios, apreciar a encenação mortuária das memórias, estátuas, lápides eoutras comemorações e de tudo isto tirar a conclusão de que o homem é vaidoso mesmo quando já não tem nenhuma razão para continuar a sê-lo. 

Em busca dos poetas mortos (2 exemplos)

Com tanto lugar para ir, o viajante vai à Vilarinho de Samardã em busca de Camilo Castelo Branco, a casa nem é mais a mesma, mas o importante é estar la.
Hão-de perdoar-se ao viajante estas fraquezas: vir de tão longe, ter mesmo à mão de ver coisas tão ilustres como um palácio velho, dois vales, cada qual sua beleza, uma serra lendária, e correr, em alvoroço, a duas pobres aldeias, só porque ali andou e viveu Camilo Castelo Branco. Uns vão a Meca, outros a Jerusalém, muitos a Fátima, o viajante vai à Samardã. Por esta estrada seguiu, a cavalo ou de traquitana, o doido do Camilo quando jovem. Em Vilarinho passou ele, palavras suas, « os primeiros e únicos felizes anos da mocidade»
Foi aqui que viveu e morreu Camilo Castelo Branco. O viajante sabe que a verdadeira casa ardeu em 1915, que esta é tão postiça como os merlões do Castelo de Guimarães mas espera que lá dentro alguma coisa o comova tanto como o chão natural que as muralhas rodeiam. O viajante é homem muito agarrado à esperança.
Em busca de Teixeira de Pascoaes:
Esta casa é de poeta. Viveu aqui Teixeira de Pascoaes, debaixo daquelas telhas morreu. Bateu à porta, espera que venham abrir: « Falha a viagem se não entro.» É que esta casa não é museu, não tem horas de abrir e fechar, mas sem dúvida há um deus dos viajantes bem intencionados, é ele que diz: « Entre» , e quando se apresenta não é deus nenhum, mas sim o pintor João Teixeira de Vasconcelos, sobrinho de Teixeira de Pascoaes, que abre todas as portas de uma casa toda ela preciosa romã e vai acompanhando o viajante até ao fundo do corredor. 

 Ler o livro consultando o Google Imagens

É um livro para ler tranquilamente, sem pressa, pois nao é um guia de turismo com muitas fotos e poucas letras, sao so letras e nenhuma foto. Cabe a nos leitores, para a leitura ficar mais empolgante, procurar as imagens e sentir o baque do que ele esta falando. Por exemplo:
O Convento de Mafra é grande. Grande é o Convento de Mafra. De Mafra é grande o convento. São três maneiras de dizer, podiam ser algumas mais, e todas se podem resumir desta maneira simples: o Convento de Mafra é grande. Parece o viajante que está brincando, porém o que ele não sabe é pegar nesta fachada de mais de duzentos metros de comprimento, nesta área ocupadade quarenta mil metros quadrados, nestas quatro mil e quinhentas portas e janelas, nestas oitocentas e oitenta salas, nestas torres com sessenta e dois metros de altura, nestes torreões, neste zimbório.
Ai tu joga no Google e wow!!!

Biblioteca do convento
Um castelo para Hamlet

Quem diz castelo, pensa altura, domínio de quem está de cima, mas aqui tem de pensar outras coisas. Pensará, sem dúvida, que o castelo da Lousã é, paisagisticamente, das mais belas coisas que em Portugal se encontram.Hamlet viveu e se atormentou, foi debruçado para o rio que fez a sua irrespondível pergunta, e, se nada disto aqui aconteceu, ao menos o viajante acredita que nenhum lugar existe no mundo com mais adequado cenário para uma representação shakespeariana, das que metem castigos, vaticínios funestos e grandeza. É uma cenografia natural que não precisa de retoques, e em tenebrismo dramático nada poderia ser mais impressionante. Construído de xisto, o castelo da Lousã resiste mal ao martelar alternante do sol, da chuva, das geadas, do vento, ou então é o viajante que isso teme por ver como se estão esboroando, nos sítios mais expostos, os muros restaurados. Tem porém o xisto uma coisa boa: cai uma lasca, facilmente se põe outra.Voltou o viajante à estrada armando na imaginação grandes projectos de teatro e filme, mas felizmente aos poucos o foi distraindo a alta montanha que à direita se ergue.
Nenhum diretor colocou este plano de encenar Hamlet neste castelo ainda?
Évora

Que há em Évora mais monumentos do que em qualquer outra cidade portuguesa? E, mais não havendo, serão os daqui mais valiosos? Estes apóstolos da Sé são magníficos: porém, são mais ou menos magníficos do que os do pórtico da Batalha? Inúteis perguntas, tempo perdido. Em Évora há, sim, uma atmosfera que não se encontra em outro qualquer lugar; Évora tem, sim, uma presença constante de História nas suas ruas e praças, em cada pedra ou sombra; Évora logrou, sim, defender o lugar do passado sem retirar espaço ao presente.


Veneza portuguesa

Diz-se que Aveiro é a Veneza portuguesa, mas não se diria que Veneza é o Aveiro italiano; diz-se que Braga é a Roma de cá, mas só um brincalhão de mau gosto diria que Roma é a Braga de lá.



Em junho estarei indo conferir de perto algumas dicas do viajante, quando retornar, colocarei aqui a minha opiniao e a dele.

Para finalizar: 
A viagem não acaba nunca. Só os viajantes acabam. E mesmo estes podem prolongar-se em memória, em lembrança, em narrativa. Quando o viajante se sentou na areia da praia e disse: « Não há mais que ver», sabia que não era assim. O fim duma viagem é apenas o começo doutra. É preciso ver o que não foi visto, ver outra vez o que se viu já, ver na Primavera o que se vira no Verão, ver de dia o que se viu de noite, com sol onde primeiramente a chuva caía, ver a seara verde, o fruto maduro, a pedra que
mudou de lugar, a sombra que aqui não estava. É preciso voltar aos passos que foram dados, para os repetir, e para traçar caminhos novos ao lado deles. É preciso recomeçar a viagem. Sempre. O viajante volta já.

Veja também:
Livro e Filme: O homem duplicado
As intermitências da morte
Ensaio sobre a lucidez
Todos os nomes
Caim
Filme José e Pilar

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